16/08/2021

Margarida Mendes: Colonialismo Molecular, extrativismo no mar profundo e antropoceno sônico

No dia 27 de setembro, a pesquisadora portuguesa Margarida Mendes participará do #FAIL | Tecnologia e política: pensar e fazer mundos a partir de suas falhas e ruínas. Organizado pelo MediaLab.UFRJ e pela Lavits, em parceria com a Eco.Pós e apoio da Faperj, o evento acontecerá de 27 de setembro a 1º de outubro, com transmissão ao vivo pelo Youtube. A proposta do evento é debater as falhas como ocasião para contestar e renegociar processos que, em condições normais, pareceriam inquestionáveis.

Margarida Mendes integrará a mesa de abertura do evento ao lado de Achille Mbembe. Curadora, pesquisadora, ativista, Mendes atua na interseção entre cibernética, filosofia, ecologia e cinema experimental. Ela explora as transformações dinâmicas do ambiente e o seu impacto nas estruturas sociais e no campo da produção cultural e, também, formas alternativas de educação e resistência política por meio da sua prática colaborativa, da programação curatorial e do ativismo. Atualmente, Mendes é doutoranda no Centre for Research Architecture, Goldsmiths University of London, com o projeto “Deep Sea Spectrum“. É ao ambiente misterioso e inescrutável – aos humanos – das profundezas marítimas que Mendes dedica seus trabalhos mais recentes.

Como Mendes aponta no artigo The Sonic Ocean, há uma notável ausência de mapas abrangentes sobre o mar profundo, há apenas 15% de informações batimétricas detalhadas sobre o fundo do oceano e regiões abissais, de acordo com estudos da NASA. O oceano profundo é, assim, “um lugar que não vemos, que não chegamos, que não se toca, que não sabemos como representar”. Este espaço lacunar, entretanto, vem sendo dominado historicamente por práticas e imaginários do âmbito industrial, militar e tecnopositivista. Estados e corporações voltam seus interesses para os recursos aquáticos enquanto desenvolvem estratégias de governança, infraestruturas legais e tecnológicas que possam permitir tanto o controle geopolítico quanto a extração e comercialização de riquezas minerais e biogenéticos marinhos.

Com o esgotamento da terra, o grande desconhecido oceânico se apresenta como a última fronteira no planeta ainda inexplorada e fonte iminente de lógicas extrativistas. O oceano e especialmente o mar profundo assumem lugar privilegiado para se debater as crises climáticas, o antropoceno, as disputas pelas perspectivas de mundo e os fenômenos de diferentes escalas, do escopo planetário ao âmbito molecular. O trabalho da curadora e pesquisadora busca, assim, disputar os imaginários, regimes de representação e as possibilidades de percepção do mar profundo com as representações comerciais, militares e extrativistas. A inquietação de Mendes dirige-se às formas de representação da situação do planeta. Como podemos representar? Como produzir conhecimento sobre esse espaço e apresentá-lo publicamente? Como essas representações podem ser mobilizadas politicamente como argumentos ecológicos para que se instaure um debate público? Como as sensibilidades artísticas, a estética e o campo visual podem influenciar o que se pensa desse espaço de fronteira? Enfim, como a arte e a pesquisa podem intervir e participar? Questionamentos que reverberam o chamado de Isabelle Stengers para se construir “uma vida que explora conexões com novas potências de agir, sentir, imaginar e pensar” (2015, p. 20).

As investigações oceânicas se desdobram em duas dimensões: a dimensão sônica do antropoceno a partir das águas e a produção de formas de dar a ver, ouvir e sentir o extrativismo no mar profundo. No âmbito sonoro, destaca-se o artigo The Sonic Ocean, a organização do dossiê A Sonic Anthropocene. Sound Practices in a Changing Environment, do Caderno de Arte e Antropologia e Sounding the Mississippi colaboração no projeto Mississippi. An Anthropocene River (2019), na qual Mendes explora a “continuidade interescalar” entre humanos, o meio ambiente e a indústria, especulando a partir do resíduo sônico o impacto da toxicidade em corpos diversos.

Já a sua pesquisa sobre o extrativismo e a mineração em mar profundo pode ser vista condensadamente em What is Deep Sea Mining? uma série de cinco episódios do canal online inhabitants. Mendes atua também como consultora e colaboradora do projeto, dedicado a produzir e exibir curtas documentais.

Colonialismo molecular

O trabalho de Mendes sobre o oceano profundo desdobra inquietações anteriores em torno das investidas neocoloniais sobre corpos e organismos, ao nível molecular. Na exposição que Plant Revolution!, curada por ela em 2019, são exploradas diferentes narrativas de mediação tecnológica do reino vegetal, provocando reflexões sobre a condição de cognição expandida das plantas e sua dominação pela indústria alimentar e pela geoengenharia – o que tem criado divergências genéticas que afetam a fertilidade dos organismos, gerando uma condição de dominação militarizada e desigual.

O problema já havia sido abordado pela pesquisadora em 2017, quando cunhou o conceito de colonialismo molecular. O termo faz referência direta aos conhecidos Organismos Geneticamente Modificados (GMOs, na sigla em inglês), que a autora trata especialmente no âmbito da cadeia alimentar, como no cultivo da soja e do milho, por exemplo. Por meio da modificação genética, empresas passaram a interferir diretamente nos ciclos naturais da vida e dos ecossistemas:

Se, no passado, os regimes coloniais do mundo ocidental costumavam estar implicados nas noções de raça e territorialidade pelo seu intercâmbio de pessoas como moeda de troca e pelo uso de controlo militar e do conhecimento cartográfico dos territórios colonizados para manter a sua soberania no território estrangeiro, as estruturas de poder emergentes que atualmente se formam movem-se para além do individual e do geográfico, alcançando o domínio infinitesimal do gene e da molécula. (2017, p. 135)

Nossos próprios corpos também estão sujeitos a consequências de nível molecular e letal a partir do consumo de tais organismos, por meio do que Mendes denomina uma “relação proprietária de subjugação biológica” [1].

Porém, o colonialismo molecular não diz respeito apenas aos modos como a espécie humana se apropria dos demais organismos vivos por meio da manipulação genética, mas, também, ao processo de investigação e transformação do próprio corpo – endocolonização. Em face da imprevisibilidade da incorporação de 80 mil novas moléculas ao ecossistema terrestre no último século, impõe-se a gestão empresarial de patentes biológicas do genoma humano e, consequentemente, da plasticidade genética e da seleção natural, embasadas por uma analogia do DNA com códigos computacionais. Deste modo, é reproduzida uma racionalidade computacional que traduz sistemas abertos e caóticos em fórmulas matemáticas e isoladas, a fim de preservar interesses corporativos – programadores, patenteadores, laboratórios – incompatíveis com éticas ecológicas.

É o que Mendes aponta como uma “abordagem neoliberal ao domínio do natural enquanto plataforma potencial para o lucro”: a vida é tratada como informação – portanto um dado que pode ser coletado, analisado e visualizado por recursos computacionais, como um algoritmo. Como Mbembe argumenta, ao citar a autora: “há uma mudança de distribuição de poderes entre o humano e o tecnológico, no sentido de que as tecnologias estão se transformando em uma ‘inteligência geral’ e com capacidade de autorreplicação”.

Ainda que não disponhamos de uma solução imediata para os problemas colocados, a pesquisadora sugere um caminho possível – além da regulação legal da programação informática e da intervenção genética – no debate sobre “a relação colonialista da intervenção humana sobre a esfera natural, questionando formas de raciocínio ético e criativo envolvidas nos instrumentos que utilizamos, e criando espaços de diálogo entre diferentes epistemologias” (2017, p. 140).

[1] É o que reforça um estudo elaborado pela pesquisadora brasileira Larissa Bombardi (USP): em média, 50 bebês por ano são intoxicados por agrotóxicos no Brasil e, a cada dois dias, um brasileiro morre pelo mesmo motivo. O estudo publicado em formato de atlas, “Geografia da Assimetria – o círculo vicioso dos agrotóxicos e o colonialismo na relação comercial entre o Mercosul e a União Europeia”, foi conduzido a pedido da Frente de Esquerda no Parlamento Europeu, no contexto da oposição ao Acordo UE-Mercosul. O tratado de livre comércio, assinado pelos dois blocos em junho de 2019, reforça um modelo comercial no qual o sul global é responsável pela exportação de bens primários, enquanto o norte fica encarregado da exportação de produtos industrializados. Portanto, o uso do conceito de colonialismo molecular feito por Bombardi em sua pesquisa concentra múltiplas camadas do processo de colonização.

Referências

MBEMBE, Achille. Bodies as Borders. The European South, n. 4, pp. 5-18, 2019

MENDES, Margarida. 2017. “Molecular Colonialism.” In: Matter Fictions, ed. Margarida Mendes, pp. 125-140. Berlin: Stenberg Press.

STENGERS, Isabelle. 2015. No tempo das catástrofes. São Paulo: Cosac Naify.